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martes, 12 de junio de 2018

AUTISMO: REVISÃO CRÍTICA DO CONCEITO


Autismo: revisão critica do conceito.

Resumo: O objetivo desse ensaio é analisar criticamente o conceito do autismo, desde os estudos de Kanner, em 1942, até a ultima edição  do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM).  Também tem a finalidade de mostrar como o autismo, inicialmente considerado sintoma de um distúrbio de afetividade, foi transformado num dos principais diagnósticos psiquiátricos para a criança. O trabalho busca evidenciar estudos que vieram mudar a concepção sobre o autismo, introduziram às características já identificadas do referido distúrbio, os problemas de desenvolvimento, afirmando que as crianças com autismo são possuidoras de déficits cognitivos, mudando radicalmente os  conceitos existentes na época, baseados nas teorias psicogênicas.

1.            Apresentação
Historicamente, temos acompanhado sucessivas mudanças paradigmáticas, normativas e conceituais em relação ao autismo,  que implicam, ou deveriam implicar, em mudanças nas práticas sociais e educacionais e na saúde das pessoas com o espectro do autista.
O autismo caracterizado como um distúrbio invasivo do desenvolvimento vem sendo  estudado pela ciência  desde o inicio do século XX, mas ainda é alvo de muitas divergências e questionamentos, sobretudo  pela diversidade de características que apresenta.
A palavra autismo vem do grego autos que significa si mesmo, referindo-se a alguém retraído e absorto em si mesmo. Alguém que caminha como que envolto em sombras, vive em um mundo próprio ao qual não podemos chegar. Autismo é o mais grave distúrbio da comunicação humana que compromete a socialização e a imaginação (AMA/SP, 2013)
O termo autismo foi criado inicialmente por Plouller em 1906 na literatura psiquiátrica, para descrever a perda de contato com a realidade e o isolamento observados em adultos com esquizofrenia.( GAUDERER,1995).
Entretanto outros autores como Schwartzman, (2011) Assumpção (2009) ressaltam que foi Bleuler, psiquiatra austríaco que primeiro conceituou a esquizofrenia como uma doença mental, em 1911, os transtornos esquizofrênicos caracterizam-se, em geral, por importantes distorções do pensamento e da percepção, e por afetos inapropriados ou embotados. [1]
Em 1942, Kanner descreveu sob o nome “distúrbios autísticos do contacto afetivo” um quadro caracterizado por autismo extremo, obsessividade, estereotipias e ecolalia. Esse conjunto de sinais foi por ele visualizado como uma doença específica relacionada a fenômenos da linha esquizofrênica. Kanner observou 11 crianças de idade variando de dois anos e quatro meses a onze anos, sendo oito meninos e três meninas. As observações apontavam uma síndrome “única” não reportada até o momento que parece ser suficientemente rara. Kanner publicou suas observações 30 anos mais tarde. (Schwartzman, 2011; Assumpção, 2009; Gauderer, 1995).
 A primeira edição do DSM é uma variante da sexta versão da Classificação Internacional de Doenças (CID), da Organização Mundial da Saúde (OMS), que pela primeira vez incluiu em suas descrições clínicas uma seção dedicada aos transtornos mentais. O DSM-I continha um glossário de descrições de categorias diagnósticas nas quais fazia uso do termo “reação”, o que refletia a influência da perspectiva psicobiológica de Adolf Meyer, para quem os transtornos mentais constituíam reações da personalidade a fatores psicológicos, sociais e biológicos (APA, 2002). Nessa edição, a etiologia do transtorno era notadamente levada em conta. O uso de termos como “mecanismos de defesa”, “neurose” e “conflito neurótico” indicavam a influência da psicanálise na construção do Manual (N. SIBEMBERG, 2011, p. 93).
O autismo aparece no DSM-I como um sintoma da “Reação Esquizofrênica, tipo infantil”, categoria na qual são classificadas as reações psicóticas em crianças com manifestações autísticas (APA, 1952). Portanto, na primeira edição do DSM o autismo não é apresentado como uma entidade nosográfica.
As primeiras alterações dessa concepção surgem em 1976 a partir de Ritvo, que passou a considerá-la como uma síndrome relacionando com o déficit cognitivo e considerando não uma psicose e sim um distúrbio do desenvolvimento. (Assumpção, 2009).
Ao longo dos anos o conceito do autismo sofreu algumas modificações, entretanto em 2003, o Manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais - DSM – IV- TR ™, considera o Autismo como um transtorno abrangente do desenvolvimento que ocorre antes dos três anos de idade. A especificidade do autismo remete às características diagnósticas norteadoras como “a presença de um desenvolvimento comprometido ou acentuadamente anormal da interação social e da comunicação e um repertório muito restrito de atividades e in­teresses” (DSM-IV- TR ™ 2003, Pag.99)
O DSM-IV (2003) relata que o transtorno tem prevalência de quatro a cinco crianças em cada 10.000, com predomínio maior em indivíduos do sexo masculino (3:1 ou 4:1) e decorrente de vasta gama de condições pré, peri e pós-natais.No que diz respeito a sintomas associados ao Autismo, Schwartzman, (2011); Belizario, 2010; Assunção, (2009); Silva, 2010: Gauderer, (1995): Gillberg (1995) afirmam que  65% a 90% dos casos de autismo estão associados a deficiência mental, havendo poucos com QI acima de 80. Também são muito comuns alterações em nível motor, que abrangem a hiperatividade, movimentos estereotipados automáticos e/ou condição hipotônica, marcha atípica e ainda condutas auto e hetero-agressivas.
O Transtorno Global do Desenvolvimento não diz respeito apenas ao autismo. Sob essa classificação  descrevem-se diferentes transtornos que têm em comum as funções do desenvolvimento afetadas qualitativamente. São eles: Autismo; Síndrome de Rett; Transtorno ou Síndrome de Asperger; Transtorno Desintegrativo da Infância; Transtorno Global do Desenvolvimento sem outra especificação.
Com base no DSM.IV  pode - se elaborar a seguinte síntese para o Diagnostico Diferencial (DD).

Características dos Transtornos Globais do Desenvolvimento (TGD)
TID
Características Clínicas
Autismo (Clássico)
1.            Presença de 6 de 12 déficits envolvendo todos os três domínios do comportamento que definem o espectro autístico:
·                     déficits na sociabilidade, empatia e capacidade de compreensão ou percepção dos sentimentos do outro;
·                     déficit na linguagem comunicativa e imaginação;
·                     déficit no comportamento e na flexibilidade cognitiva.
2.            Detectável antes dos 3 anos de vida.
3.            Diagnóstico não é excluído pelo nível cognitivo, competência ou existência de outras deficiências.
Síndrome de Asperger
1.            Incapacidade social e de compreensão ou percepção dos sentimentos do outro.
2.            Falta de flexibilidade com interesses limitados.
3.            QI ≥ 70 (pessoas afetadas podem ter inteligência normal ou superior a média).
4.            Não há atraso na aquisição da linguagem.

TGD não especificado
1.            Aplica-se as crianças menos acometidas, mas que não se têm as características da síndrome de Asperger.
Transtorno desintegrativo (TD)
1.            Desenvolvimento normal em fases precoces, incluindo a fala.
2.            Regressão grave entre as idades de 2 a 10 anos, afetando a linguagem, sociabilidade, cognição e competência nas habilidades da vida diária.
Síndrome de Rett
1.            Regressão global grave em lactentes do sexo feminino (raramente, masculino), resultando em deficiência mental grave, perda da capacidade de comunicação e outros déficits neurológicos.
Fonte - Schwartzman (2011), Assumpção (2009)

Na literatura encontram-se freqüentemente dois termos para caracterizar o autismo: transtorno e espectro. Para entendermos melhor esses termos busca-se definir a sua denominação. A idéia de transtorno define uma condição onde são alteradas qualitativamente um conjunto de capacidades no desenvolvimento comunicativo, social e cognitivo. O termo espectro explica a dispersão dos sintomas, desse modo, nos encontramos frente a um conjunto de sintomas semelhantes que permitem identificar o transtorno, porém, por sua vez, apresentam uma ampla diferença nas manifestações dos mesmos. (MATELLAN, 2012).
Ao longo de uma década esse era o conceito vigente. Em 2013, o DSM V, define o Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) como uma única categoria de transtornos Déficits persistentes na comunicação e interação social em  diferentes contextos, bem como padrões de comportamento,  interesses ou atividades  restritos e repetitivos, manifestados precocemente na infância (APA, 2014)
O DSM-V propõe o que reflete um consenso científico de que quatro doenças previamente separadas são realmente uma única condição com diferentes níveis de gravidade dos sintomas em dois domínios do núcleo 2. O transtorno agora engloba a anterior desordem autista (autismo) do DSM-IV, o transtorno de Asperger, transtorno desintegrativo da infância e transtornos invasivos do desenvolvimento sem outra especificação. O transtorno atual é caracterizado por déficits na comunicação social e interação social e comportamentos, interesses e atividades restritos e repetitivos ( DSMV, 2013).
Como ambos os componentes são necessários para o diagnóstico de TEA, o distúrbio de comunicação social é diagnosticado se comportamentos restritos e repetitivos não estão presentes. Usando o DSM-IV, os pacientes podem ser diagnosticados com quatro doenças diferentes. Segundo o site do DSM-V, os pesquisadores descobriram que esses diagnósticos separados não foram aplicados de forma consistente em diferentes clínicas e centros de tratamento. “The Neurodevelopmental Work Group”, liderado por Susan Swedo, investigadora sênior do Instituto Nacional de Saúde Mental, recomendou que os critérios do DSM-V para TEA seja um melhor reflexo do estado do conhecimento sobre o autismo. Eles acreditam que um único “transtorno guarda-chuva” vai melhorar o diagnóstico de TEA sem limitar a sensibilidade dos critérios, ou alterar substancialmente o número de crianças que estão sendo diagnosticadas.(DSM5).
O Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos (NIMH), principal financiador de pesquisas na área do país, abandonou oficialmente o DSM – V, apenas duas semanas antes do seu lançamento, segundo comunicado escrito por seu presidente Thomas Inse e publicado no site do Instituto (http://migre.me/eoT9G), o NIMH irá "re-orientar sua pesquisa para longe de categorias do DSM (MAKHOUL, 2015)
Segundo Makhoul (2015), de acordo com os critérios do DSM-V, os indivíduos com TEA devem apresentar sintomas desde a infância, mesmo que esses sintomas não sejam reconhecidos até mais tarde. Segundo os editores, esta mudança de critérios incentiva o diagnóstico precoce do TEA, mas também permite que as pessoas, cujos sintomas não podem ser plenamente reconhecidos até que as demandas sociais excedam sua capacidade, recebam o diagnóstico. Para eles seria, então, uma importante mudança de critérios do DSM-IV, que foi voltado para a identificação de crianças em idade escolar com transtornos relacionados ao autismo, mas não era tão útil no diagnóstico de crianças mais novas. Os critérios do DSM-V foram testados em situações clínicas da vida real, como parte dos ensaios de campo e análise do DSM-V e o teste indicou que não haverá mudanças significativas na prevalência da doença.
Uma importante crítica foi feita por Allen Frances, quanto à definição do transtorno e à interpretação feita acerca da mesma. Ele aponta as três formas de sintomas descritas no Critério A para o diagnóstico:
1. Déficit de reciprocidade socioemocional;
2. Déficit em comportamentos comunicativos não verbais utilizados para a interação social;
3. Déficit no desenvolvimento, manutenção e compreensão dos relacionamentos;
Quanto a isso, Allen diz que “os exemplos do DSM-V oferecidos para cada um desses três itens são vagos o suficiente para se sobre porem à normalidade, mas eu não teria feito uma grande confusão sobre isso”. Além disso, aponta que “a falha realmente fatal é que não são dadas instruções para saber se um item, dois itens, ou todos os três itens devem estar presentes para fazer o diagnóstico de Transtorno do Espectro do Autismo. O diagnóstico vai variar drasticamente de avaliador para avaliador, instituição para instituição. Será ainda mais impossível do que é agora para determinar as taxas de autismo e porque eles mudam muito ao longo do tempo.
Especialistas da APA argumentam que desse modo  o diagnóstico torna-se mais fácil e permite ao médico reduzir o tempo de consulta, ainda que a indicação de tratamento seja, na maioria dos casos, a mesma; o tratamento medicamentoso e cognitivo-comportamental. Por outro lado, como vimos, leva também a um aumento do número de diagnósticos de autismo, na medida em que não há lugar para outras subcategorias como o Transtorno de Asperger, de Rett e Desintegrativo da Infância.
Com o DSM-5, a APA consagrará e formalizará o uso, já corrente, da “classificação” espectro autista , a despeito das consequências que daí podem advir. Milhares de observações críticas e manifestos contrários ao DSM-5 foram postados no site da APA quando os dois primeiros rascunhos do Manual foram submetidos ao comentário público, contudo sem resultados. Uma parte deles apontava a multiplicação e proliferação de categorias diagnósticas, como o manifesto “O DSM-5 e o apagamento do sujeito” afirmam especialistas da Intersecção Psicanalítica do Brasil (IPB, 2012).

2.    Conclusão -  As categorias diagnósticas antes presentes no DSM, como as da Síndrome de Asperger, na classificação de autismo, desapareceram com o DSM-5, por considerarem que o caráter inclusivo da categoria “Transtorno do Espectro do Autismo” extingue  as diferenças entre dois quadros clínicos tão distintos. Apesar das críticas, a quinta edição do Manual mantem todas as modificações previstas nos rascunhos.  Portanto,  faz-se necessária uma grande  reflexão acerca do  quão  efetivas são as mudanças propostas pelo novo manual. O tempo nós dirá.....

Referencias

AMA. Associação de Amigos do Autista.   Retrieved 13/02/2013, from http://www.ama.org.br/site/en/historia.html.
APA. American Psychological Association.   Retrieved 28/02/2014, from http://www.apa.org/ 
ASSUMPÇÃO, JÚNIOR, FB, KUCZYNSKI, E. Autismo  Infantil: Novas Tendências e Perspectiva – São Paulo: Atheneu, 2007.
BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70. 2006
Brasil. Resolução nº 466/2012. 15/03/2012, from http://conselho.saude.gov.br/web_comissoes/conep/index.html
BRIDI, F. R. S., Fortes, C. C., & Bridi Filho, C. A. Educação e autismo: sutilezas e as possibilidades do processo inclusivo. In B. W. Roth (Ed.), Experiências educacionais inclusivas: Programa Educação Inclusiva: direito à diversidade. Brasília, DF: MEC/SEESP. 2006.
CARVALHO, R. E.  Saberes e práticas da inclusão: avaliação para identificação das necessidades educacionais especiais. (Série: Saberes e práticas da inclusão) 1. Necessidades educacionais. 2. Aluno portador de necessidades especiais. Brasília, DF: MEC/SEESP. 2006.
CUNHA, E. A.  Práticas Pedagógicas para Inclusão e Diversidade (3 ed.). Rio de Janeiro: Wak. 2013.
DSM-IV-R. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (C. Dornelles, Trans. 4 ed.). Porto Alegre: Artmed. 2002
DSM-V.   Retrieved 22/02/2014, from http://www.dsm5.org/
Frances, A. Transformamos problemas cotidianos em transtornos mentais. Disponivel em https://jornalggn.com.br/noticia/allen-frances-transformamos-problemas-cotidianos-em-transtornos-mentais. 2015
JÚNIOR, F. B. A., & KUCZYNSKI, E.  Autismo infantil: novas tendências e perspectivas. São Paulo: Atheneu. 2007
MAKHOUL, MDP. Práticas pedagógicas de professores de alunos autistas. Tese de Mestrado, 2015
SCHWARTZMAN, J.S. ARAUJO, C.A. Transtorno do Espectro Autista – TEA – São Paulo: Memnon. 2011.



[1] Neste período o termo autismo era utilizado na literatura psiquiátrica para designar uma característica da esquizofrenia e não como um quadro clínico específico.

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